Artigo: “Escola sem Partido” ou educação sem liberdade?
No ano de 2014, o deputado estadual do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro entrou em contato com o advogado Miguel Nagib, criador do movimento “Escola sem Partido”, com um pedido: desenvolver um projeto de lei que colocasse em prática as propostas de seu movimento. Nagib atendeu prontamente ao pedido, e Flávio Bolsonaro apresentou à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) o Projeto de Lei (PL) 2974/2014, que propõe a criação do programa “Escola sem Partido”, no âmbito do sistema de ensino do Estado. No mesmo ano, o vereador Carlos Bolsonaro, irmão de Flávio, apresentou à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro um projeto quase idêntico, o PL 867/2014. Miguel Nagib disponibilizou, no site do programa, dois anteprojetos de lei, um estadual e outro municipal, bastando a deputados e vereadores de qualquer lugar do Brasil acessar o site, copiar a proposta e apresentá-la como sua nas câmaras municipais e estaduais. Atualmente, projetos de lei que tentam estabelecer o “Escola sem Partido” tramitam nacionalmente em sete estados e no Distrito Federal, além de em inúmeros municípios, já tendo sido aprovados em alguns deles, com este ou outros nomes. Mas qual é, afinal, a proposta deste movimento?
O próprio nome “Escola sem Partido” é bastante enganador, pois apresenta uma falsa dicotomia entre escolas “com” e “sem” partido. Para os incautos, pode até parecer uma boa opção: “não queremos influências partidárias nas escolas”. Mas não é isso que está em jogo. Esse movimento parte da premissa de que professores e professoras não devem ser educadores, devendo limitar-se a transmitir a matéria, sem tratar de assuntos atuais ou discutir valores. Qualquer coisa que ultrapassasse a transmissão de conhecimento seria considerada “doutrinação ideológica” e, por isso, passível de “estar em conflito com as convicções morais dos estudantes e de seus pais” (Art. 2º do PL nº 867/2014). A educação seria responsabilidade da família, que não poderia ser contraditada nos seus valores morais, religiosos e sexuais. A professora, o professor e a escola teriam de ser “neutros”. Mas quem decidiria o que seria “neutro” e o que seria “ideológico”? Ou melhor, como ignorar que todo conhecimento parte de algum viés, e que docentes e discentes o produzem sempre dentro de um contexto?
Sabemos que as palavras não são neutras e que, ao constarem em um projeto de lei, trazem consigo a intenção de que seus interlocutores façam uma determinada interpretação, embora isso não possa ser garantido. “Democracia”, “qualidade” e “igualdade” são exemplos de palavras que figuram “vazias” nos textos e documentos políticos, são “vazias” para que possam permitir o maior número possível de significações e, com isso, angariar mais adesão.
O PL nº 867/2014 do “Escola sem Partido” contém 13 vezes a palavra “liberdade”. O uso do termo, entretanto, é contraditório. De um lado, aparece com ênfase ao supostamente defender a liberdade de aprender de estudantes, mas, de outro, parece inexistir para professoras e professores, cerceados em sua liberdade de ensinar. A “liberdade de consciência” explicitada pelo documento é atribuída apenas a estudantes e suas famílias, enquanto professoras e professores são advertidos para que não incorram no “abuso da liberdade de ensinar em prejuízo da liberdade de consciência do educando e do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (Art. 6º do PL nº 867/2014). Vemos, então, como o termo é utilizado de modo unilateral, pois, ao esgarçar a liberdade dos que aprendem, comprime a liberdade dos que ensinam, resultando em uma fórmula que parece questionável se entendemos que, para que se dê de modo efetivo, a educação precisa estar para além da repressão, seja de qual parte for.
A referência à “liberdade de consciência”, vale lembrar, não é nova no debate sobre a educação. O tema esteve presente no Brasil em outros tempos. Nos anos 1930 e 1950, tivemos grupos em embate pela educação: de um lado, os defensores da escola pública, laica e obrigatória (precisamos lembrar aqui, por exemplo, Anísio Teixeira) e, de outro, setores da Igreja Católica. Para defenderem a presença da disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas e até mesmo a subvenção das escolas católicas e privadas pelo poder público, os católicos mobilizaram um discurso que falava em nome da “família brasileira”. Tratava-se, contudo, de uma ideia de família pautada em valores católicos. Aos católicos juntaram-se os empresários da educação. Ao fazerem a defesa da “liberdade das famílias” e da “liberdade de ensino”, sinalizavam a adesão a um modelo de sociedade bem distinta da democrática, que reforçava hierarquias rígidas e na qual marcas conservadoras e autoritárias se mostravam progressivamente visíveis. Tal concepção de sociedade, também encenada nos anos 1960 nas “Marchas da família com Deus pela liberdade”, parece estar nos assombrando novamente, mais de cinco décadas depois. Substituem-se os grupos religiosos de pressão – hoje a bancada evangélica apresenta-se com força nas casas legislativas –, mas as estratégias continuam semelhantes, assim como a questão de fundo: a recusa do Estado laico e a defesa de um conjunto de ideias pautado em valores religiosos.
Atualmente, o viés conservador dos projetos de lei relacionados ao “Escola sem Partido” tem como carro chefe o debate sobre gênero e sexualidade nas escolas, que tem sido tratado pelos partidários do movimento como o grande inimigo a ser combatido pelas famílias e “cidadãos de bem”. Na prática, pretende-se inviabilizar e mesmo criminalizar todas as iniciativas educativas propostas por professoras e professores que abordem temas como desigualdades de gênero, diversidade sexual (na escola e na sociedade), o combate ao preconceito, ao sexismo e à LGBTfobia. Além disso, materiais didáticos e paradidáticos com abordagem crítica e reflexiva sobre esses temas são alvo de ataques pelos partidários do movimento. Seus defensores vêm afirmando que esse tipo de material e discussão “doutrinam” estudantes, forçando-os a aceitar a “ideologia de gênero”.
A própria expressão “ideologia de gênero” vem ganhando força nacional e internacionalmente para identificar, de maneira tendenciosa e conservadora, pesquisas, práticas e debates que problematizem as relações de poder hierárquicas ou de opressão entre os gêneros, a heteronormatividade compulsória dos espaços escolares e a LGBTfobia presente em nossa sociedade. Como vem sendo pautado pelos partidários do “Escola sem Partido”, o combate à “ideologia de gênero” apaga as demandas das e dos educadores que conhecem o cotidiano das escolas, suas necessidades e seus problemas, e que se veem diariamente desafiados por questões de gênero e sexualidade que eclodem em suas salas de aula, corredores e pátios. Supor que essas temáticas são “levadas” para a escola por materiais didáticos ou atividades pontuais é demonstrar total desconhecimento do contexto escolar e de seus conflitos, que existem justamente porque a escola – especialmente a escola pública brasileira – é plural e diversa.
Outro ponto destacado de forma reiterada no site do “Escola sem Partido” diz respeito à marca “de esquerda” que estaria presente no professorado brasileiro, de forma majoritária. Quando refletimos sobre o sentido dado pelo movimento a esse viés “de esquerda”, verificamos que ele é identificado de modo direto com “doutrinação” e “cooptação de mentes”, como se estudantes fossem elementos passivos, sem nenhum protagonismo na vida escolar e em suas vidas para além da escola. Percebe-se que o que está sendo entendido como “de esquerda” remete, na verdade, a uma tradição democrática da educação brasileira, que, em lugar de ser demonizada, deve ser valorizada. Paulo Freire (apresentado pelos partidários do “Escola sem Partido” como referência nociva a ser “varrida” das escolas), Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira foram alguns dos que se comprometeram com a defesa incansável da escola pública e com práticas que valorizam as e os educandos como sujeitos ativos em seu processo formativo. Essa tradição democrática, reforçada no processo de redemocratização do país na década de 1980, de crítica à ditadura civil-militar e a seus impactos na cena educacional, vem estimulando, não a doutrinação, como tentam fazer crer indivíduos totalmente distanciados do “chão da escola”, mas uma educação pautada pela autonomia, liberdade e pelo pensamento crítico do educando.
Um terceiro alvo dos entusiastas do “Escola sem Partido” é o livro didático, tomado como uma referência prescritiva da ação docente. O tom adotado é de denúncia e alarmismo, pois nos livros estaria consubstanciada a “doutrinação”, o que desconsidera todas as mediações realizadas no uso e consumo dos materiais. Para efeitos de prova, os partidários do movimento apresentam textos e atividades descontextualizados, alguns retirados, inclusive, de livros didáticos reprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), criado em 1985 pelo Ministério da Educação e que é atualmente considerado referência mundial em políticas públicas de educação, tanto pela magnitude e abrangência, como pelo aperfeiçoamento constante ao longo das últimas décadas. Em 1996, o PNLD iniciou a avaliação qualitativa das obras, tendo como premissa a defesa da pluralidade de concepções de ensino e aprendizagem, bem como de referenciais teóricos para cada disciplina. É interessante observar que um dos critérios para exclusão de um livro de História, por exemplo, é justamente a doutrinação, pois ela eliminaria um pressuposto caro à ciência histórica, qual seja, a multiperspectividade e o desenvolvimento do pensamento crítico. No Guia do Livro Didático da área de História de 2015, o critério de avaliação estipula a “isenção de doutrinação religiosa e/ou política, que desrespeite o caráter laico e autônomo do ensino público, bem como de utilização do material escolar como veículo de difusão de marcas, produtos ou serviços comerciais”. Este critério denota a preocupação com a pluralidade de ideias na escola pública, em políticas implementadas e aprimoradas há décadas por educadores e educadoras, gestores e gestoras, pesquisadores e pesquisadoras.
No cenário educacional do nosso país, a proposição de projetos destinados às escolas sem a participação dos atores nela implicados – professoras e professores, estudantes, funcionárias e funcionários, e a comunidade de um modo geral – não é nova. Subjaz a essa lógica a ideia da professora e do professor como meros executores, consumidores passivos de políticas pensadas fora dos muros das escolas, de estudantes como receptores igualmente passivos e, ainda, de uma educação mecanicista, prescritiva, apartada dos acontecimentos da vida e esvaziada das questões culturais, políticas, sociais e econômicas que a atravessam. Sabemos, contudo, que a educação não é uma prática descontextualizada: ela não se faz na neutralidade. É fundamental valorizarmos a professora e o professor como educadores, no sentido mais amplo que essa palavra indica, e defender a participação democrática de todas as pessoas que vivem o cotidiano escolar, uma vez que é impossível pensar qualquer projeto que se dirija à escola à revelia de quem ali está. Precisamos, mais do que nunca, de uma escola que esteja aberta à vida e a tudo que nela está implicado – a diversidade, a diferença e o conflito advindo desse encontro.
Amana Rocha Mattos
Instituto de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social / UERJ
Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi
Faculdade da Educação /UERJ
Carina Martins Costa
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Programa de Pós-Graduação em Ensino de História/ UERJ
Conceição Firmina Seixas Silva
Faculdade de Educação/UERJ
Fernando de Araujo Penna
Faculdade de Educação/UFF
Luciana Velloso
Faculdade de Educação/UERJ
Paula Leonardi
Faculdade de Educação/UERJ
Verena Alberti
Faculdade de Educação/UERJ